segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Sobre amores platônicos

Hoje eu li em uma entrevista algo sobre amores platônicos, e me surpreendi. A pessoa dizia que amores platônicos acontecem com a gente para nos mover, nos fazer chegar em algum lugar. E para completar, ainda disse que esse tipo de amor não nos deixa sofrer pela falta da pessoa como sofreríamos por alguém que amássemos de uma forma mais real e palpável.

Verdade! O platônico é amar à distância, a quem nem conhecemos de verdade, e se conformar com isso. É amar o mistério, a falta de intimidade, o desconhecimento. O ser amado é mitificado, é colocado em uma posição de endeusamento, de perfeição que só pode existir quando não conhecemos alguém suficientemente para reconhecer nela o que carrega de mais mortal, o que a iguala às outras pessoas. Quando esse encanto é quebrado, o amor acaba, porque esse é um amor que não resiste a decepções, ele sobrevive de uma imagem que ele mesmo criou, e não de aspectos naturais e comuns.

É difícil entender um amor platônico ou o que nos leva a sentir algo assim por alguém, e as vezes chega a parecer até ridículo. Muitas pessoas criticam esse tipo de amor por simplesmente não entenderem como é possível amar tanto algo que não está ao nosso alcance, que é perfeito demais para ser real, obra da nossa imaginação. Mas essa definição que eu li na entrevista caiu como uma luva para entender o sentido desse amor que invade alguns corações.

Depois que a vida anda, já conscientes desses processos todos, vemos que amar platonicamente nos fez chegar a algum lugar, foi como uma ponte que nos ligou, de alguma forma ou outra, ao que somos e temos hoje. Talvez o platônico traga mais resistência aos sentimentos, mais aceitação, até resignação. Talvez nos faça crescer através do sofrimento que nós mesmos nos impomos ao amar o impossível. Serve sempre de canal, de fuga, de opção. Para qualquer decepção ou dor, voltamos correndo a ele, que nessas horas parece ser um porto seguro perto de tudo o que se vê aí fora. No entanto, também pode facilitar a nossa fuga do mundo real, o esforço que se faz para não enfrentar a vida e seus descaminhos, 0 que não é nada bom, mas também não deixa de resultar, mais tarde, em alguma lição valiosa.

Não importam os caminhos que pegamos, as escolhas que fazemos, tudo nos leva – com demora ou não – a aprender algo que precisávamos muito aprender. O amor platônico deve ser um desses caminhos tortos, mas que para muitos parece ser mais fácil, quando não temos muita certeza da direção a tomar. Amar um ideal de pessoa que só existe em contos e fantasias não deixa de ser uma forma de, mais tarde, amar incondicionalmente a realidade de alguém bem imperfeito, mas insubstituível pelo resto da vida.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Você não envelheceria


Você não chegou a envelhecer. Mais do que jovial, foi menina, com toda a ternura e doçura que essa fase pode sugerir. Mas mesmo que eu lamente não ter podido ver você envelhecer, ao mesmo passo em que você não pôde me ver amadurecer, eu sei que essa coisa toda é ilusão da minha cabeça. Por mais tempo que você tivesse aqui na Terra, não envelheceria jamais.

Os anos não tiraram de você esse frescor de alma, essa vontade intensa de viver os prazeres mais simples da existência. Você guardava tudo em uma caixinha muito especial, que eu sei, chama-se sabedoria. Cada emoção e sensação que você curtiu com a intensidade desse espírito criança, sensível e especial, foram compondo o ser rico em amor e sensatez que marca a lembrança de todos que sentem sua falta hoje. Nós não sabíamos de onde vinha esse toque angelical e essa facilidade em compreender a vida que você exalava, mas agora sentimos, através da saudade, o quão gigante você sempre será.

A força do tempo não conseguiu agir sobre você de nenhuma forma negativa. E mesmo que você permanecesse aqui além desses sessenta anos, ele só te tornaria melhor. A vida não anulou seus sonhos, suas fantasias, suas criancices, sua disposição para acreditar que tudo é melhor do que se pensa. Você já nasceu intocável para tudo que pudesse poluir sua pureza, seu dom celestial.

Você não segurou seu sorriso e nem seu pranto, dando à sua essência humana toda a liberdade que ela necessitava. Demonstrou a quem fosse, tudo o que estivesse sentindo no momento exato em que florescia, na alma tão bela, os mais puros sentimentos. Mas não havia mesmo o que esconder, afinal, você sempre foi cristalina e bondosa.

Isso tudo é muito curioso, porque você, embora com todos esses encantos infantis, possui qualidades típicas apenas das almas milenares. E eu sempre soube que dentro dessa roupa quentinha e cheirosa havia uma alma vinda de muitas e muitas dimensões. Mas como pode um espírito tão experiente conservar, ainda, o que de melhor Deus sonhou a seus filhos e guardou nas crianças? Sim, é justamente essa vivência toda. Você não foi feita para envelhecer.

Você veio, justamente, para rejuvenescer as almas imaturas, mas já corrompidas por sentimentos impuros, que nasceram ao seu redor e aprenderam com a sua presença o valor inquestionável do amor, da amizade, da compreensão, do respeito, da generosidade, da paz. Você foi o bálsamo de tranqüilidade que contagiou a todos bem no momento das tormentas e das dúvidas. Você provou com seu toque invisível a existência de Deus, de um céu infinito e da eternidade.

Mas chegou a sua vez de retornar ao seu lar – tão e tão seu, cheio de luz e bênçãos – e nos deixar aqui, pernas mais fortes, vistas mais apuradas, corações mais abertos, mas ainda egoístas a ponto de achar que você nos pertencia e que nunca poderia nos deixar. E você não deixaria se tivesse a escolha, mesmo sabendo que o paraíso a aguardava, tamanho seu desprendimento e simplicidade. Mas não houve escolha, já que Deus é sábio e precisava da sua luz em outro lugar. Aqui, você fez mais do que lhe foi confiado, e por isso tão pouco tempo parece tão bem aproveitado.

Deus sabia que todo o tempo não seria suficiente junto com você, e que não havia forma dessa separação ser menos dolorida. Todos nós, por mais mortais que sejamos, a queríamos para todo o sempre. Nós a levaremos para todo o sempre.

E se existe limite para tudo, inclusive para as nossas missões aqui na Terra, essa regra também não valeu pra você. Não houve velhice que te alcançasse, nem tempo que te superasse, nem nada que te suprisse. Assim como não há saudade maior do que a que você plantou nos corações que te assistiram e nem amor que se compare ao que você ensinou.

E não há distância que bloqueie as ondas de luz e da mais benéfica energia que você continua enviando a todos. Eternizada está entre nós sua alma imortal.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Menino sem bicicleta não é menino


Meninas são meninas. Meninos são sempre moleques. E quando a gente imagina um moleque, ou um bando deles - que é mais divertido ainda -, parece que vem uma cena padrão à mente: a rua, esticando-se lá atrás, e um peralta pendurado em uma bicicleta, as vezes até andando sem as mãos. Sim, a bicicleta nunca é vista separadamente deles, e nem eles dela. Menino sem bicicleta não é menino.

O Victor, por relaxo, já estava sem bicicleta há um bom tempo. Também, brincava o dia todo e depois nem se dava o trabalho de guardá-la quando tinha que entrar. A coitada, além de ser usada em rampas e outras aventuras para as quais não era própria, ficava na chuva, no sereno, no relento. O tempo agiu rápido sobre ela, fazendo com que o Victor valorizasse sua companheira inseparável da pior maneira possível: pela falta. Chegou um tempo em que o pedal nem rodava mais, tudo endureceu na coitadinha.

Mais frustrante não poderia ser. O Victor mora em um lugar privilegiado para quem é moleque. Uma rua calma e bastante espaçosa pra pedalar, fazer rampa, derrapar e tudo o mais. Mas quando ele não pode brincar na rua, espaço não é problema dentro da chácara onde ele mora, e onde se reúnem, todas as tardes e finais de semana inteiros, um verdadeiro batalhão de meninos que nunca cansam de brincar e brigar. Então, imagine tudo isso, e todos eles juntos, cada um com a sua bike, e o Victor lá, com seus 10 anos de idade, a pé...

Os pais, enraivecidos pela falta de cuidado e zelo do filho, prometiam nunca mais lhe dar outra bicicleta. Aquela já devia ser a terceira, e como ele cresceu rápido, a última, já que era tamanho grande. Bicicleta é assim mesmo, chega um tempo, ainda na infância, que a gente ganha a última, e geralmente é quando chega a bicicleta grande, aquela que não tem mais pra onde evoluir. Mas o Victor não cuidou da dele e deu no que deu... todo mundo de bike, e ele correndo atrás, a sola de sapato mesmo.

As vezes ele emprestava a bicicleta da tia, mas isso lhe valia um bom sermão a cada emprestada. Ele, relaxado, ou deixava de guardar a bike, assim como fez com a dele, ou a devolvia com os pneus cheios de barro, e até coisa pior... de cachorro (éca!). Cada vez que ia pedir era um sermão de recomendações e ameaças, e a cada final de dia, ao devolver, era uma bronca diferente.

Um dia, de dentro do carro da mãe, ele se apaixonou. Viu numa loja especializada em magrelas uma bicicleta totalmente diferente. Nunca mais ela saiu de sua cabeça. Estilosa mesmo, formato diferente, banco continuado, rodas bem largas, parecia bem confortável... e cara! Se pedir uma bicicleta nova já era uma tarefa complicada, quem dirá uma daquela, quase três vezes mais cara que as outras comuns. Mas não tinha jeito, ele só queria aquela.

Pediu, pediu, pediu... o ano todo, cada vez que passava na porta da loja seus olhos brilhavam, seu coração batia mais forte. Ele estava apaixonado e, quando evocados seus sonhos de vida, nem titubeava em dizer: “eu quero aquela bicicleta”. Ficou prometido que, talvez, se ele merecesse, ganharia no dia do aniversário. Mas o Victor só faz aniversario em dezembro, portanto, havia ainda um longo caminho a seguir. Enquanto isso, ia quebrando o galho com a bike da tia, de vez em quando, sobre os mesmos protestos, ou,com a solidariedade dos amigos, brincava de esconde-esconde, pega-pega e outras coisas que não exigissem duas rodas.

Mas de longe, quem olhava, sabia que um menino, quando não tem uma bicicleta, perde um pouco sua identidade de menino. Ele fica meio sem jeito, desambientado, desmotorizado. Ele também se sentia assim, mas tinha fé que em seu aniversário isso mudaria, mesmo com as ameaças em volta por causa do inesquecível destino da magrela anterior. Esperou pacientemente e, a essa altura, a data se aproximava.

A surpresa veio antes do que ele esperava. Ainda faltavam alguns dias para completar os seus 11 anos quando tudo foi preparado. Parte da família se reuniu e comprou a tal bicicleta que rodava e reluzia em seus sonhos. O amor faz uns movimentos interessantes dentro de uma casa, não é mesmo? Mas ele mereceu sim... era um bom menino, embora meninos sejam sempre e cada vez mais moleques. Pelo menos ele tinha saúde pra isso e esse era o grande incentivo para aqueles pais, aquela tia e aquela bisavó que foram correndo providenciar o sonho do menino que parecia meio manco sem a sua bike.

Quando ele chegou em casa, seu pai mandou pegar o colchão no quarto do irmãozinho. Ele foi, meio a contra-gosto. Jamais iria imaginar que o seu sonho já estivesse reluzindo lá dentro, dias antes do seu aniversário, afinal, todo mundo dizia que ele não ia ganhar é nada. Abriu a porta e... “Nossa! Quem foi?”, disse, com um sorriso de orelha a orelha de menino agora realmente moleque, completo, feliz. Era isso mesmo que ele queria.

Já era noite e garoava, mas ele não podia esperar mais. Saiu com a sua bike novinha em folha, apresentando-a a cada pedrisco, cada pedaço de grama e de concreto onde ela passará com ele inúmeras vezes pelos próximos anos. E não parou aí. Todos os dias, ao chegar em casa, pega a sua bicicleta esquisita, toda diferente e estilosa, e sai, com os amigos, agora poderoso sob essas pernas extras que ele esperou durante quase um ano todinho. Não se vê mais o Victor sem a sua magrela, amiga, companheira e moleca também, só que essa teve a sorte de ser mais bem cuidada: mora dentro de casa, toma banho e é velada com muito esmero.

Um menino com sua bicicleta é um menino completo, moleque de verdade. E os adultos que sentam na escada do terraço pra ficar olhando aquela molecada toda fazendo peripécias sob duas rodas na rua sente isso de longe, e agradece a Deus por essa fase da vida.