segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Nós estaremos unidas (...)



Ouvi falar de um amor incomum. De um amor teimoso e mal criado as vezes. Um amor meio rebelde, meio idealista, meio ranzinza, desses que têm respostas para tudo bem na hora, que brigam e fazem de tudo para se impor. Não era um amor fácil, não, mas era um amor enorme. Um amor desses sem medida, sem cautela. Um amor que não se negava, marcante, inesquecível.

Esse amor tinha dono. Não parecia, mas tinha sim. Ele não dava muito o braço a torcer, mas era todo de alguém que sabia bem que o possuía. E era um amor tão enorme, tão desmedido... mas seu dono o merecia. Seu dono sabia entender aqueles rompantes, aquelas explosões, e até as suas necessidades de calmaria. O dono desse amor aí era sábio um tanto e perfeito o suficiente para vê-lo por dentro e adorá-lo até nessas tantas imperfeições e imaturidades de um amor que ainda tinha muito pra crescer.

E os dois juntos eram invencíveis, completos. Eram mágica de viver na própria rotina da Terra. Os dois se entendiam e se dedicavam de tal maneira que nada precisava ser explicado ou desculpado. Eles se viam por dentro, viam sim. A comunicação, as vezes, era surreal. Falavam as vozes altas, quase sempre, as risadas e os choros, mas também os olhares, os risos disfarçados, as palavras contidas, as vontades e os gestos sufocados. Falavam os gostos, os desejos, os sabores, as cores e tudo o mais. Tudo sempre, sempre intenso. Nessa história de amor tão natural e ao mesmo tempo tão incomum, tudo acontecia em forma de erupção. Era amor + amor, somado cada vez mais com o passar dos dias.

Fiquei sabendo desse amor por alto e, confesso, na hora achei normal. Amor é amor, sabe bem quem sente... mas não, era coisa imensa demais. Era um amor que não desgrudava, que não se via longe, não sabia e nem queria saber do distante. Era amor demais!

Um dia o dono do amor teve de partir e, na hora, não pôde levá-lo. Foi uma correria só, um choro infindável. Os dois não poderiam mais se ver e aquilo, sem qualquer prévio aviso ou preparação, foi um golpe baixo da vida, sufocante. Amor daqueles não se separa, não. Mas foi assim... um mudou de mundo e o outro teve de ficar, tudo em um sopro, um suspiro breve. Esse sopro revirou a vida do amor imenso, lhe trouxe um efeito maior do que um vendaval. O amor, embora enorme, ficou tão sem graça...

De tão revoltado que ficou, decidiu procurar e exigir dos céus uma alternativa, já que ninguém mais poderia ser a outra parte do seu próprio amor. Procurou, brigou, esperneou e nada, ninguém lhe deu resposta nenhuma. Aí, um dia, o amor resolveu, pela primeira vez, adotar a tal da resignação. Até então ele nem sabia o que era, mas teve de descobrir. Ficou sem cor, sem graça, sem vida, esperando por algo que nem ele sabia o quê. Aí a resposta veio.

Recuperando as forças, o amor viu que nada no mundo poderia separar dele o que o tornava tão imenso. Ele viu que nem as forças ocultas do universo são capazes de calar as canções que faziam festa em seu coração, as belezas que lhe reavivam os olhos, o sabor que sentia da vida. Não havia lugar no espaço que fosse longe o bastante para impedir as ondas de amor que iam e vinham, de lá pra cá, de cá pra lá, numa troca constante e eterna entre essas duas partes agora separadas. Mesmo longe, sem a visão, o olfato, o tato, a audição, ele sentia que algo insistia em preencher seu coração, em forçá-lo a levantar e a continuar. Era ele, o seu amor.

Nesse instante ele se sentiu poderoso e vingado. Era rebelde o danado, era bravo como ele só. Essa percepção mostrou o poder inabalável que ele, o amor, junto com o seu outro amor, tinham. E isso vinha... do amor, simples assim, que sentiam mutuamente, portanto, não havia como parar e nem acabar nunca. Esse amor gigante e recíproco nunca deixaria de existir e de crescer, porque as ondas são cada vez mais fortes e inundam esses dois. A vida não conseguiu calá-los e nem intimidá-los. Lhes tirou, é verdade, a escolha, mas não a possibilidade de continuarem amando um ao outro sem parar.

Esse amor nunca precisou de justificativas e nem de desculpas. Agora, ele também não precisa de provas e nem das obviedades da vida. Ele existe e não pára de crescer e se fortalecer. Mesmo com a falta, o amor continua aprendendo e seguindo o seu caminho, e isso o torna ainda mais especial, porque desarma o tempo e mostra pra ele que nada é capaz de anular algo tão verdadeiro e puro.

Ouvi falar desse amor e me arrepiei.

Ps: na noite em que ela se foi, poucas horas antes, eu reclamava porque teria de voltar ao trabalho e não queria deixá-la sozinha, ficar longe dela. Ela, com toda a sua doçura e sabedoria, disse bem de leve: "nós estaremos unidas por nossas almas e nossos corações". Agora, isso é tudo que me resta.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Desabrigo



Eu brigo com o tempo que passa lento,

E com todos os anjos do céu

Que desfrutam de você agora

Como só eu podia, outrora.


Eu sou aquela casa vazia,

Desabrigada de mim mesma

Pela ausência da sua alegria

E dos espaços que só você preenchia.


Eu sou o próprio silêncio instalado.

As defesas sufocadas, tão incapazes

Demonstram quão pequena sou.

Sem você fui privada dos meus lugares.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Mãe

Ontem eu chorei um choro que precisava. Sozinha, isolada, eu chorei alto, protestei e chamei, chamei o quanto pude, mesmo sabendo que a voz que eu esperava não me responderia. Ontem eu me fechei em um lugar onde pudesse, simplesmente, chorar sem a companhia e nem a solidariedade de ninguém. Chorei por você e pela falta que me faz, mais e mais, a cada novo dia. Chorei por mim e pela constatação da minha impotência diante da realidade da vida e da morte, e ídem pela minha fraqueza diante desse mundo que ficou, de repente, tão gigantesco e inexplorável sem a sua companhia.

É fácil chorar ao lado de outras pessoas. Elas podem chorar junto, ou então se solidarizar com aquelas lágrimas que sequer traduzem a imensidão de uma dor ou de uma saudade. É fácil chorar com abraços por perto, com presenças, com apoio. Difícil é chorar com e pela ausência, a covarde ausência que se impõe sem que exista nenhum mecanismo de defesa contra ela. Sim mãe, é bem mais difícil chorar sozinha, tentando entender a sua própria dor e não conseguir transformá-la em nada além de lágrimas que se esparramam no rosto da gente enquanto a dor e a impaciência se esparramam na alma.

Ontem eu precisava chorar esse choro sozinho, sufocado, calado, evitado. Eu precisava soluçar, chamar seu nome, dialogar com você naquele silêncio impenetrável, mudo. Ainda me falta gritar, como tenho também vontade, mas aquelas lágrimas, nos minutos em que duraram enquanto o fim da tarde anunciava a noite e o escuro declarado do meu dia, serviram como parte desses gritos que tanto pedem pra sair em forma do seu nome. Mãe! Mãe!

Eu poderia ter acendido mais velas pra você ontem. Poderia ter feito preces também durante o dia. Mas eu preferi chorar, chorar sozinha, sem a complacência de ninguém, sem a companhia e a dor de mais ninguém por perto, só a minha. Eu preferi chorar por ter perdido você. Chorei porque hoje você está em algum lugar de Deus e eu estou aqui.

Essas lágrimas ainda descerão mais vezes, mãe. Elas virão lavar a minha solidão, minha raiva e meu inconformismo. Elas terão de vir mãe, e eu peço que você as compreenda, as perdoe. O tempo, que não anda, talvez possa ser empurrado por essas correntezas que saem dos meus olhos até que um dia Deus permita que eu navegue de novo até você, minha Ilha.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Longe daqui




Daí, desse longe
de onde você olha agora
há de existir
aquela tal aurora
que sonhavam seus olhos
românticos demais para um humano.

Nessas tantas e tantas milhas
que separam meus braços
dos seus abraços
há de ter o calor intuitivo,
o afago transcendental
que só você possuía, cativos.

Há de existir,
aí nesse novo mundo seu
um pouco do que almejava
esse louco amor meu
quando delirava homenagens
à sua alma sobrenatural.

Aí, onde eu não posso habitar,
por enquanto,
e sabe-se lá quando,
imagino pássaros, borboletas e pétalas
forrando o chão e o espaço,
saudando sua presença a cada passo.

Tão longe daqui -
onde o silêncio ainda impera -
tem que haver paz, beleza,
felicidade sem espera.
Seus sonhos em concreto
com a poesia que você fizera.


Mãezinha, eu não quero apenas homenageá-la. Eu quero eternizá-la.
Aliz

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Sua ida



Que vida boa aquela
Quando o sol era soberano
Nos dias de minha vida.
E quando o céu era de verdade,
Cada nuvem dizendo algo.
Menos sobre a sua ida.

Como era diferente
E eu nem sabia!
Agora, nesse escuro,
Sob um silêncio cruel, forçado,
Eu vislumbro a perfeição
De tudo que tinha no passado.

Ouço as músicas
Que poderia ter cantado a você,
E as formas para declarar
A falta que me faria
Se eu conseguisse imaginar
A sua ausência um dia.

No lugar das flores
E das cores intensas
que enfeitavam nossos dias,
Há apenas lembranças sobre você.
Milhares delas, espalhadas
Por todo o planeta onde fiquei sozinha.

Minha voz e meus olhos,
E até mesmo meus atos e meu medo
Disseram diariamente que te amo.
Mas eu repetiria, incansável,
Como a imensidão desse amor,
Interrompido tão cedo!

Bem sei da sua eternidade,
Alma leve de passarinho, de água limpa,
De céu aberto, de vôo de borboleta.
Bem sei que agora pode tudo.
Mas levou contigo a beleza de minha era,
O encanto do meu mundo.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Diante do meu volante, em caminhos escondidos

Aprender a dirigir passou de tormento a poesia em minha vida. De um sonho distante, demorado demais, se tornou mais uma possibilidade de descobertas dentro e fora de mim, sobre pessoas, modos e lugares.

Desde que meu carrinho chegou – finalmente -, tenho aprendido nele os primeiros comandos, segredos e vícios existentes na vida de quem é motorista. Eu não via a hora de sair por aí, girando o meu próprio volante sobre as rodas que podem me levar a qualquer lugar.

Isso ainda não aconteceu de todo, já que ainda estou em processo de aprendizagem, mas desde então que eu venho notando como uma lição bem passada e muito desejada flui na vida da gente para o bem inquestionável: é a mágica da motivação. Eu pensava apenas em dominar os comandos do carro e adquirir o mínimo do instinto que detecto nos bons motoristas com quem ando. Quem diria, estou indo mais longe!

Como pessoas desabilitadas só podem aprender, oficialmente, com um profissional autorizado, em aulas marcadas e pagas, tive de dar o meu jeitinho. Nunca tinha dirigido antes, então, é perfeitamente compreensível a minha ansiedade logo que o pretinho chegou. No mesmo instante já tive aulas com minha cunhada, que, com muita paciência, foi me passando os comandos iniciais e já me confiou o banco do motorista. No outro dia mesmo já estava me aventurando sozinha nos arredores de casa: estrada de terra, curvas, ruelinhas estreitas. Depois, os motoristas todos da família tiveram de me aturar. Final de semana algum deles teriam o compromisso de sair comigo e me ensinar mais e mais. Eu queria – e quero - voar!

Isso não faz tanto tempo assim, e pouca coisa mudou desde então. Já saio sozinha, mas ainda não me aventuro pelas ruas de verdade, com tráfego e possíveis guardas. Mas a minha vontade só aumenta, então tive de dar um outro jeito, que veio graças a uma solução trazida por meu irmão – o cara mais velho que ficou no lugar do pai e, agora, me ensina mais essa lição. Ele me levou para além da nossa rua, me deu as asas que foram possíveis naquele momento do meu sonho de guiar. E que bom que isso aconteceu.

Já fomos várias vezes andar pelos caminhos escondidos da cidade, com pedaços asfaltados, outros em puro cascalho. Já subimos e descemos muitos morros, estradinhas estreitas rodeadas de árvores e barrancos ameaçadores, subidas muito íngremes, belas paisagens. Ao nosso redor, liberdade! Chácaras bem cuidadas, casinhas simples, animais, mato, céu, chão bom de andar, chão ruim, valetas, sobe e desce. Até na chuva, com solo lamacento e muito escorregadio meu irmão já me ensinou a transpor! E agora é assim, todo domingo, nos refugiamos por trilhas ao redor da cidade que escondem um verdadeiro tesouro natural e a paz que a gente busca quando quer, simplesmente, dirigir. E é mesmo como se, vivendo isso, sentássemos diante do volante da nossa vida e deixássemos tudo que é prático demais pra atrás.

A cada domingo tem sido ainda mais maravilhoso! Depois do costumeiro almoço com a família, dá aquela vontade enorme de fugir, sair, contemplar a vida. É, chegou a hora daquele compromisso delicioso que passou a fazer parte da minha vida e que está ficando ainda melhor conforme eu pratico. Fomos todos juntos, em dois carros, aprender a dirigir comigo... mas fomos muito mais longe, eu sei.

Desbravamos lugares tão agradáveis que fica até difícil descrever as sensações, de tão atípicas diante da rotina que se vive hoje em dia. E, ainda bem, eu aprendi a nunca abrir mão de momentos simples assim. A natureza viva e colorida por todos os lados, silêncio de gente substituído por barulho de bicho e de vento, estradão de terra, o tremer do cascalho embaixo dos pneus, o céu imenso e a companhia daqueles com quem eu posso ser cada vez mais eu me deram uma visão privilegiada da vida. Era um ar realmente limpo e a liberdade mais despretensiosa do mundo que nos conduzem nesses domingos. Juntos, compartilhamos momentos extremamente simples, naturalmente felizes, que precisaram apenas da nossa disposição para acontecer.

Meu carro, novinho em folha, vive borrado de terra vermelha, de lama e poeira desses caminhos que eu descubro nos finais de semana, e eu acho isso a coisa mais linda do mundo! Lavo quantas vezes forem necessárias, mas que o meu e todos os carros do mundo, consigam passear pela vida do jeito que eu estou passeando nessas lições de volante que tenho junto à minha família nos arredores da nossa cidade. Que árvores e grilos, flores raras, caipiras, bichos estranhos façam parte dessa paisagem, porque o amor pela vida começa assim, com tudo isso que a gente aprende a admirar conforme vai avançando as marchas.

Convido-te a sair


Você é uma porta que se fechou.
O capítulo que, finalmente,
Dou por terminado.
Despeço-me de você agora,
Lembrança de outrora,
De tudo aquilo que fui e não consigo mais ser.


E ao me despir de você,
Abandono também todas as ilusões
Que permearam meus sonhos até aqui.
Encerro o ciclo de amor
Que ainda parece não acabar mais.
Irei para bem longe de ti.


Minhas lembranças não terão mais permissão
De visitá-lo no cair da madrugada,
E tampouco nas manhãs silenciosas, serenadas.
Nem sequer nos dias de sol intenso,
E em nenhum outro momento.
Fique longe de mim.


Pelo meu próprio bem, me retiro
De todos os espaços que você ocupa.
Renego, em troco, o amor que um dia também me foi negado.
E as lágrimas, que, enfim, secaram.
Devolvo-te o silêncio e a ausência,
E esqueço, pois se foi, a angústia.


Despeço-me da tua saudade,
Do teu frescor, da tua ousadia,
Do teu ego, que tanto alimentei.
Hoje eu prefiro a solidão segura
Mas repleta da candura
De quem aprendeu outra lição.

Contratado




Não me incomoda sair de casa, conviver com desconhecidos ou o trabalho em si. Ele é bendito, uma vez que é exercício para a mente e o corpo. Me incomoda a prisão, a imposição, a chantagem indireta e covarde praticada há tantos séculos. Me ofende a obrigatoriedade de dias e horários, de excesso, de obediência, como se eu fosse um equipamento programável. Me irrita o peso de uns sobre os outros através de ordens, desmandos, autoridade usada de forma burra, ignorante.

Por que vendemos tão barato o nosso tempo? Por que a ausência de pessoas queridas, a distância de tudo que nos faz bem é tão desvalorizada? Por que, em troca de um salário que nunca dá, tenho de fingir não ser humana? Aliás, por que todos fingem juntos essa competência e essa perfeição irreais em qualquer situação, enquanto outros fingem acreditar e aceitar? É mesmo preciso agir assim, se matando aos poucos, fazendo-nos doentes, para sustentar nossas necessidades? Essa ausência de tempo e de vida transforma as necessidades em vaidades e nós nem notamos.

A negação da liberdade é tão violenta quanto a renúncia que fazemos, nós próprios, dela. Tudo em troca de alguns trocados que sequer compram nossa felicidade e tampouco recuperam o tempo perdido e a saúde de outrora, dos tempos em que havia tempo para sermos nós mesmos, sem teatro e nem tortura.

O homem, quando se torna trabalhador, é confundido com ferramenta, máquina, tudo o que é duro, bruto e sem vida, a ponto de confundir-se ele mesmo sobre quem é e esquecer-se do que realmente gostaria de ser.

O trabalho é bendito, deveria ser experimentado assim, como um prazer, uma opção a mais para aprender a ser cada vez melhor como ser humano. Deveria, de verdade, ser humano e natural, tanto quanto são aqueles que o desempenham. Sem gente não haveria trabalho. Ele deveria ser realista, livre, respeitar a natureza pessoal, e não usar de força, de poder, de obrigação. Mas enquanto for praticado dessa forma, sob exigências e imposições, enquanto for mantido sob as mãos impiedosas dessa ditadura mascarada de democracia e direitos, o ato de trabalhar não renderá todos os bons frutos que poderia, nem para um lado e nem para o outro.

O mercado de trabalho global ainda não aprendeu a usar em seu favor a maravilha que tem nas mãos.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Amigos, amigos...


Amigos são pedaços nossos que Deus espalhou pelo planeta antes de aqui desembarcarmos.

São sopros de vida intensa e mutante misturados ao vento, capazes de virar oxigênio até.

São as letras de nossos livros de memórias, os números das páginas da nossa vida.

São o pigmento desse arco-íris que cruza o nosso caminho e que, no final, guardam mesmo um enorme tesouro. Enormes!

Se a arte e a cultura são invenções para a alma não sucumbir diante da razão excessiva do cérebro, os amigos são, então, os pincéis carregados de tintas de todas as cores que preenchem o quadro da nossa existência.

E quem dera que esses amigos, tão vitais, fossem conscientes do tamanho que têm diante dos meus olhos! Quem dera que sequer pudessem sentir o amor nunca declarado que lhes devoto!

Como seria enfadonha a vida sem o som dessas risadas soltas, altas, debochadas, tão sinceras, tão íntimas, tão bem-vindas mesmo quando riem de nós mesmos.

E que insuportável seria sem esses ouvidos aguçados, atentos, compreensivos, generosos, que ouvem, entendem e perdoam antes mesmo de qualquer ofensa involuntária. Ouvidos abençoados que nos têm nas mãos, mas lançam mão desse poder por pura nobreza de espírito, puro amor puro.

E que incipientes seriam os dias sem esse conjunto de manias e diferenças, de gostos e desgostos, de falhas e acertos diante dessa espantosa naturalidade humana que só acontece entre grandes amigos.

Quanta solidariedade há no ato de aceitar e trazer, pelas mãos, alguém para dentro da própria vida, acolhê-lo com carinho, mantê-lo com verdade, aceitá-lo com igualdade, dedicá-lo um amor ainda pouco compreendido.

Mas não há como falar do dom da compreensão para um grande amigo, porque só ele tem propriedade para isso. Ele sabe bem o que é, como nasce e como nunca deixar morrer. De tão grande que é, esse amigo compreende mesmo quando os motivos não se encaixam em seus princípios, porque ele preserva a alma alheia, respeita e enxerga sua imensidão.

E não há, também, como enumerar os dons dos nossos amigos. De tanta devoção e admiração que tenho por eles, a cada novo dia de convivência, descubro novos talentos pulsando nesses espíritos que não devem mesmo ser desse mundo. Eles não têm defeitos, porque é justamente esse jeito único de cada um que os torna perfeitos.

Amigos, amigos... templos divinos, refúgios sagrados que nos escondem do mundo e nos guardam no melhor dos lugares, onde nada de ruim pode acontecer. São lugares onde reinam o perdão, o respeito, a afinidade, a alegria e todos os outros ingredientes desse alimento indispensável para a nossa permanência aqui na Terra.

Amigos queridos, muros desse reino onde eu fico tão à vontade, onde posso ser realmente eu e meus defeitos: por sua causa acredito na eternidade.

Conflito de Eus


A sanidade em mim grita, ela quer sair. E não está sozinha, traz junto muitos outros EUs que não consigo mais controlar. A mania e o amor pela liberdade, ideais alternativos, uns lances de revolução estão com ela... com eles todos que estão soltos para a vida – e nasceram pra isso – enquanto eu permaneço aprisionada aqui fora, nesse mundo descompassado, errado, fora de foco.

Nada disso faz sentido pra mim, e eu vivo buscando utilidades e justificativas para vivermos assim. A busca é o que me mantém respirando, no entanto, o tempo que passa sem respostas está ficando cada vez mais pesado. Não sei se é ele ou eu, mas o sentido pouco aceitável dessa “realidade”, as vezes, é insuportável e não convence nem mesmo as mais fúteis ilusões.

É urgente: eu preciso sair, fugir, dessa casca.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Incontrolável



Quando escorreram as palavras
Correram as lágrimas
Escapadas, incontroláveis,
Por que não tinha quem as segurasse.
Incontroláveis.

Eram indomáveis
Aqueles sentidos se misturando
Causando um nó
Nas teias já bagunçadas,
Violadas.

Porque quando escorreram,
As lágrimas,
o corpo já estava abandonado,
a esmo,
dele mesmo.

E os sentidos soltos por aí
Andavam, perdidos,
Esquecidos e alvoroçados
Dos seus intuitos.
Muitos!

Mas aí, finalmente,
O tempo chegou.
Foi se abancando, se instalando,
Remontando os pedaços.
E ficou.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Não se esconda



Não se esconda de mim. Meus olhos, mesmo sem poderem te ver, buscam incansavelmente por todos aqueles elementos que me fazem reviver dias inesquecíveis.


No fundo, não é o ver ou o tocar que satisfazem o amor. O amor só é satisfeito pelo sentimento, por aquilo que representa, pelas marcas que deixa, pelo que se torna inquestionavelmente maior do que qualquer outra coisa. É a saudade, mas principalmente, a certeza de que o distanciamento não acaba com a lembrança e nem com a vontade de que continuasse para sempre.


E o sempre é o documento que prova o valor disso que eu agora relato a você. Não se esconda de mim, não. A ausência de palavras e afirmações não irão ajudar nesse processo que, na realidade, é mais doloroso do que o próprio fim. Declarações cada vez mais espaçadas ou o próprio silêncio não servem para nada quando a força do que foi dito antes ainda permanece nos cantos das nossas almas.


Não adianta ficar do lado de trás da porta, mas ainda colado a ela para ouvir o que se passa do lado de cá. Eu não faço segredos para você. Não se esconda e nem esconda seu coração de mim, porque o que não podia acontecer já aconteceu, e agora já faz parte da história de nós dois, por mais que ela não seja escrita a quatro mãos.


A força do que foi ainda é mais forte do que essa, do que é, do que está sendo. Não esconda seu brilho de mim, seus sussurros, seus desejos repentinos e despropositados. Eu ainda estou aqui, e junto comigo, o efeito teimoso de tudo que, juntos, já fizemos existir. E uma vez existente, não morre mais.


Embora invisível, construímos algo que se confunde, as vezes, ao amor. E por ter sido assim, tão incerto e tão improvável, permanece no ar misturado ao oxigênio das nossas lembranças eternas. Não se esconda de mim. Você é parte disso também, desse aroma que sempre será incomparavelmente único, dos elementos mais simples, do que nunca mais deixará de ser verdade.

Mesmo assim



Voa longe a vontade

Cuja voz já não tem mais alcance.

Com o presente vazio,

Apenas o doce passado em relance.


Soubesse antes que acabaria

Evitaria tanta coragem?

Acostumaria com o comum,

Passando longe da margem?


Não, pois se voltasse o tempo um pouco mais,

Mesmo que já imaginasse,

Fingiria novamente o “para sempre”,

Deixando que o sonho me enganasse.


E dessa nova vez,

Marca de rica oportunidade,

Amaria em doses extras.

Abusaria da intensidade.


E tudo pra não sentir assim

Os gritos fortes da vontade.

Esperança morrendo aos poucos,

Dominada pela saudade.

domingo, 23 de março de 2008

Plural ou Singular


Gostaria de entender como as notas musicais conseguem penetrar assim, e quando é, exatamente, o momento em que nos deixamos levar.


A música habita em muitos lábios e por isso é plural. Mas quando cala, diz coisas diferentes para cada um que ouve, aí ela se torna singular. Essa emoção leva aos sonhos ou às lembranças, que as vezes são plural. No entanto, a sensação que cada uma dessas coisas que a gente não sabe de onde vem e nem por quê, é singular.


A vontade humana é plural, ainda mais quando ela se torna fabricada, item de série de um pacote fechado que a gente compra sem saber pra complementar a vida. Mas o sentido de cada um desses itens que acompanham o produto que buscamos é singular, assim como os motivos que nos levam a fazer o que fazemos. E eles podem ser plural e singular ao mesmo tempo, dependendo da direção em que você está olhando agora. Se for pra fora, é plural, mas se for dentro, será sempre, sempre mesmo, singular.


O riso escangalhado é de multidão, que por si só, é plural. As vezes, é desespero, pedido de socorro afogado na falta de argumentos, e aí é singular. Mas o riso plural, que é coletivo e automático, confunde muito, embora seja bem diferente do riso singular, que não toca na sua boca pra acontecer, e acontece o tempo todo em almas mergulhadas na paz.


A paz é singular, sempre foi. E se algum dia acontecer de ela se tornar plural, então é porque deixou de existir. Este mundo aqui não sabe viver em paz, não consegue, ele sobrevive de estímulos muitas vezes sombrios, totalmente plurais. E o que não o deixa parar é exatamente a busca pela paz, por essa coisa tão e tão singular que ele não consegue entender muito bem, só querer.


E esse desejo é plural. Ele vem das massas, dos discursos, das causas nobres e tudo o mais que pinta o bonito, mas que não encontraria razão de ser se conseguisse recriar essa pintura. É o inconformismo plural. Singular seria se, ao invés de pintar, cada um mergulhasse no melhor que possui e apreciasse, simples assim, o que há de bom pra viver.


E viver, é plural ou singular?


É plural no sentido de marchar junto com essa multidão que nasce e vive com a gente ao mesmo tempo, sob os mesmos comandos de uma voz grave e rígida que não se sabe de onde soa. É plural nos desejos conjuntos, nas estampas repetidas, nos sentidos copiados, nas regras e receitas prontas para a felicidade. Mas no sentido da felicidade verdadeira, essa que brota de dentro e vive muito bem lá, e te mantém vivo numa boa dessa forma, e te faz ver de maneiras diferentes e faz sentir um gosto indescritível, então é singular. É ser feliz em aprender, em entender, em superar limites totalmente íntimos, completamente humanos, em coisas tão suas que não podem ser mais nada do que singular.


E o viver singular é atravessar uma etapa importante, decisiva, para a próxima fase desse jogo do qual a gente nunca sai vivo, mas também não morre à toa: sempre vale a pena, afinal, a causa sempre é singular.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Vazio


Papel em branco
Soltou-se do caderno
Pouco preenchido,
Aquele, esquecido,
Que o tempo não deixou
De herança
Nem esperança
Pra ninguém.


E a folha,
Que voou no vento
Tinha tudo pra ser branca
Apenas
Mas estava gasta
Pelo mesmo tempo.
O da recusa,
Da dúvida,
Do vazio,
Do medo.


E gasta de tanto espaço,
desnutrida e sofrida
por tudo que podia ter sido e não foi
passa despercebida,
agora folha velha
sem história
fraca e molhada de chuva,
sem espiral nem brochura.
Sem caderno e sem capa
Que a proteja.


O tempo que não ouve a vontade
É caderno sem letra.
E vontade antipática ao tempo
É folha nua, desalento.
A folha se perde e voa
Até desmanchar,
E o caderno, amarelado,
É do grupo dos traidores,
Que existiu e não tem como provar.


As palavras estão soltas,
Desperdiçadas, ignoradas,
Sem lugar.
Elas simplesmente existiram
Sem provas suficientes
Que as faça rebrotar
Como a emoção
Daquelas páginas ilegíveis, manchadas,
Mas cheias de registro
De sentido
Do contar.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Duas


Descobri que não sou apenas uma.

Sou duas!

E essa outra parte que me fortalece, me faz também melhor.

Eu descobri que dentro de mim há muito mais do que eu e as outras pessoas julgam conhecer.

Tudo isso porque sou duas!

Talvez eu ainda não saiba usar todo o amor que existe em mim, mas essa é uma questão de aprendizado, porque eu sei que tenho capacidade para amar em dobro.

E se eu aprender isso e outras coisas, será sempre muito pouco, porque sou duas.

Essa outra parte, complemento, faz de mim maior, e graças a ela possuo talentos em dobro.

Por causa disso eu sempre tenho a quem recorrer, acreditar e abraçar. É uma chance a mais, confiança em dobro. Fé!

Deve ser por causa dessa minha outra parte que eu sinto poder ser ainda mais bonita, mais importante, ainda maior.

Às vezes corro o risco até de me confundir, pensar que tudo isso é uma coisa só. Mas não... juntas até podemos ser uma, mas separadas estaremos incompletas.

Depois que eu descobri ser duas, fiquei ainda mais confiante, e aprendi o valor da esperança.

Muitas vezes surgem sinais claros de como somos diferentes, mas eu sei que isso é apenas um luxo, um privilégio.

Mas juntas somos perfeitas!

E mesmo que existisse a possibilidade de me tornar uma, apenas eu e só, não iria querer.

Ser duas é especial.

Só que eu tenho minhas preferências e opiniões.

Sendo duas poderia até me aproveitar da situação e atribuir a mim certas qualidade. Mas não posso...

A minha outra parte é tão mais encantadora... terna e doce, forte e valente, ela me traz o que eu preciso, e nunca se atrasa. Ela está sempre no lugar certo. Sempre aqui.

E sem ela, eu não sei... talvez eu não fosse sequer uma hoje.

Essa outra parte representa a minha sorte e bênção, e eu não a trocaria nem me separaria dela por nada.

O bom é que eu sou duas sempre nas coisas positivas, e é por culpa dela, a minha outra parte.

É importante ressaltar que nós não somos como dois pedaços. Nós somos duas: uma mais a outra. Somos a soma!

Essa soma nos faz gigantes. Eu mais porque a tenho, sinal de luz!

O mais bonito disso tudo é saber que eu não fui sempre assim, duas. Eu a ganhei.

Ela veio antes, e cheia de virtudes teve a paciência de me aguardar. E assim que eu cheguei, ela me recebeu carinhosa e me completou, como faz até hoje, um dia de cada vez.

E em cada situação ela se revela ainda mais sábia.

Sou duas e me orgulho disso, principalmente sendo a minha outra parte quem é...

Ela tem nome, forma e formosura, mas eu me acostumei a chamá-la de MÃE!



Sabe mãezinha, nem todo mundo tem a sorte de encontrar em alguém tão próximo e leal a sua outra parte. Eu tive, e disso vem a certeza de como Deus gosta de mim.

Te amo

Aliz

Palavras soltas


Seja qual for o risco, se a emoção é forte e genuína, tudo vale a pena, mesmo que represente o fim.

Mas acredite, nunca é o fim, mas o recomeço de algo novo que não sabemos ser novo. E que nunca saberemos se é, realmente, recomeço ou fim, afinal.

Só se aprende quando se sente na pele. Por isso a sensação é tão importante. Ela é a lição, e é a partir dela que começa o crescimento.

E o crescimento não termina jamais, a não ser para as almas medíocres, que se recusam a encarar a vida e a viver. Elas, coitadas, sequer chegam a nascer.

Esse barulho, esse movimento, essas indagações nunca serão o bastante. Não há lição suficiente, porque não há fim, e não há verdade nem mentira. A vida, a morte... é tudo recomeço.

E isso é tudo.

Ou é nada.

Depende do valor e da utilidade que você dá ao que aprendeu.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

“Texto Sentido” – o livro



Tive uma linda surpresa há alguns dias. Descobri (ou fui descoberta?) um livro de poesias com o mesmo nome do meu blog: Texto Sentido.


O autor, Lau Siqueira, entrou em contato comigo por e-mail contando sobre a coincidência. Dias depois, recebi em minha casa um exemplar da obra, repleta de criatividade, emoção, enfim... poesia!


A dedicatória? Ah... não poderia ser mais significativa:

“Aliz, querida, são nossas todas as palavras em Texto Sentido. Beijos! Lau”.


Os versos de Estirpe, Teia, Rio, Pluma, Poema, Simulacro, Poemail, Contralto e muito, muito mais mesmo, vieram da Capital da Paraíba. A inspiração, não sei, deve ter vindo do céu!


“Sou inconstante
E uma parte de mim
- confesso- anda distante

Como pássaro noturno
Em sobrevôo perco meu sonho
No sumidouro da estrada(...)”
(Estirpe – Lau Siqueira)


E as papoulas... ah, as papoulas...


“tudo em mim trafega
Os trilhos do infinito
Por isso o olhar
Abstrato
Sustentáculo deste
Corpo que anda sem
Mais que os passos
E voa sem mais
Que os braços”
(Papoulas – Lau Siqueira)


É incrível como a poesia consegue, a partir de elementos tão reais, ser tão abstrata, e nessa confusão toda, dizer tanto bem além das palavras.


Só posso dar o gostinho do livro aqui. Quem quiser mais, é só entrar no Blog do Lau – Poesia Sim – e ler mais, bem como comprar o livro. O endereço do blog é:

http://poesia-sim-poesia.blogspot.com/.


Adorei!
Parabéns Lau! Muito obrigada, e sucesso!!!


Sinto

(Aliz de Castro Lambiazzi)

Confundem-me todas essas sensações.
No fundo acho que é apenas uma...
Sensação!
Pensei que se amasse mais
Poderia me perder.
Pensava que se amasse tanto
Não pudesse ter.
Perco-me presa
Ou livre demais
Procuro por algo que já tenho
Por sentimentos tais.
Imaginava que dentro do existente
Muito era possível acontecer
Mas que a fantasia da mente
Ninguém mais poderia conhecer.
Sabia que poderia ser
Como um elo de mistério
E que, imersa em coisas sem sentido
Acumularia meu tesouro secreto.
Mas descobri que existem almas iguais
Que como eu, escondem-se em lugares assim
E até com muito mais
Do que coleciono pra mim.
Só assim entendi
Que talvez esse elo não seja só meu
Porque existe alguém
Que guarda segredos como eu.
E soltos, refugiados em algum lugar
Pessoas que queiram igual, de repente,
Possam se encontrar.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

São eles


São eles, os sonhos, que me deixam assim.
São eles, soltos, que maltratam minha alma.
Eles não têm o mínimo escrúpulo para pedir.
Cobram friamente, com muita insistência e sem calma.


Não importa a condição em que vivo.
Os sonhos desconhecem o real e o imaginário.
Mal lhes interessa se é possível.
Quando inflamados, desafiam meu calendário.


Apenas querem e exigem.
E enquanto eu não consigo, se revoltam contra mim.
Deixam meu espírito em frangalhos.
Meus sonhos não têm fim.


E quando se realizam é a glória!
Coisa incrível, não há descrição.
Mas logo começa tudo outra vez, os sonhos não param.
Porque a vida de todo sonhador depende dessa continuação.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Uma lição de Geografia


(Essa crônica eu escrevi a pedido de uma futura professora, para a sua pasta de estágio).



Por incrível que pareça, muitos deles ainda chegam à escola de bicicletas, carroças, cavalos, a pé. Sim, há ônibus da prefeitura, mas apenas para aqueles que moram em locais bem mais afastados. Quilômetros e mais quilômetros escondidos entre árvores, morros e ruas de terra que complementam a paisagem daquela cidadezinha do interior paulista.

Eu havia chegado há pouco. Sabia que seria uma experiência diferente, mas não imaginava que os efeitos disso tudo pudessem acontecer tão rápido, logo no primeiro dia de aula. Moradora de cidade grande desde que nasci, lecionando em escolas de periferia com muitos desafios complicados, não podia imaginar que dar aulas em uma pequena cidade do interior pudesse me fazer sentir isso. Parecia que eu estava em outro planeta.

A minha turminha de 2º ano começava a chegar e, aos poucos, eu ia me habituando com aqueles rostinhos de uma inocência diferente das que eu estava acostumada a ver nas periferias do ABC. Crianças são crianças em todo lugar, mas não sei se era o local, se era o clima, mas essas traziam algo mais no rosto. Apesar de a próxima aula ser de geografia, eu senti que tinha muita história para aprender e descobrir ali.

Olhos curiosos te seguem em todo canto quando você é nova no lugar. Imagine quando esse lugar é pequeno – com certeza há muita língua afiada por toda parte. Mas não faz mal. Agora a minha rotina é diferente. Eu escuto um galo cantar quando acordo. Ao sair, dia bem claro e luminoso, ar fresquinho da manhã. As pessoas te cumprimentam, riem à toa, elas falam com você sem precisar de assunto. E quando você é a nova professora do filho delas, aí é assunto que não acaba mais. As crianças vão chegando. São costumes e hábitos realmente diferentes. Senti um frio na barriga... será preciso mudar meu jeito de ensinar? Não tinha pensado nisso ainda, mas também não tinha imaginado que a algumas centenas de quilômetros dentro de um mesmo Estado havia tantas e diferentes particularidades. Talvez não tenha que mudar meu jeito de ensinar, mas sim minha visão urbana da vida e da realidade de cada um.

Na sala de aula eu tentava explicar as diferenças de um lugar para outro. Zona rural, zona urbana. As dúvidas surgiam meio confusas. Bem, decidi, então, destacar os aspectos principais de cada caso, dessa forma, trabalharia diversos pontos em uma mesma lição. Relevo, bacias hidrográficas, vegetação, esses seriam meus pontos de partida. Trouxe cartazes, revistas, livros que tinham as melhores imagens que iam ilustrar a minha aula, e assim, ia falando e mostrando a eles a diferença de um lago e um rio, do cerrado e da floresta, e assim por diante. E eles riam, naturalmente, a cada imagem que viam, como se aquilo fosse a coisa mais rotineira do mundo para eles. Só podiam estar tirando uma com a minha cara! Foi quando eu mostrei a imagem de uma pequena cachoeira e um dos meninos gritou:

_ Olha, igual a que tem na sua casa, Jair!.

O Jair levantou, concordando com o coleguinha, e apontou para outro cartaz:

_ E lá perto tem pedras como essas aqui também.

E de um minuto para o outro eu estava diante de um diálogo intenso entre crianças de 7, 8, 9 anos mostrando, através de minhas figuras, o que elas tinham em seus quintais. Foi então que uma aluna, menina bem miudinha, me disse, apontando o dedo para fora:

_ E esse campo aqui é que nem esse ali de fora, né professora?

Quando eu olhei janela afora, foi como se a luz apagada dentro de mim tivesse acendido, bem forte... PÁ! Eu estava ensinando geografia àquelas crianças de uma forma tão distante, tão improvável, no automático, como fazia para as crianças da periferia. Que erro! A grande diferença é que lá na periferia era mesmo algo muito distante, pois elas viviam cercadas naquela selva de concreto, em meio a tanto barulho, sob um céu cinzento, e era tão impessoal o contato que mantinham com tudo à sua volta que só me restava ensinar por meio de fotos e cartazes. Mas ali, na cidade do interior não, era tudo muito ao alcance das mãos. De mãos como as minhas que raramente tocaram a grama, a terra, a água de uma nascente.

Fui, imediatamente, pedir autorização à diretora para dar minha aula lá fora, pois lá eu tinha tudo que precisava ao alcance das mãos. Saímos de trás dos muros da escola e desbravamos as redondezas, vimos de tudo. Tomei água de bica, conheci tipos diferentes de árvores e vegetações, vi rios, lagos atrás dos portões vizinhos. E enquanto eu ensinava nomes e dados técnicos de cada coisa ali aos meus alunos, ria ao me conscientizar que eles mal podiam imaginar que a maior lição quem teve fui eu.

Para eles, a natureza é uma companheira de tempo integral. Para mim era, até então, imagem de livro. Eles descobriram o que tinham no caminho, em casa, no vizinho, aprenderam o nome correto de cada vegetação, e eu aprendi a olhar para fora da minha janela tão limitada e a desfrutar cada canto em um lugar onde os caipiras, sem saber, têm muito a ensinar.

E foi assim que, baseada na realidade e na beleza escondida em tudo, que as minhas aulas passaram a ensinar verdadeiramente. Mais do que dizer, eu aprendi a ver e a mostrar, a envolver e me envolver de corpo e alma naquilo que faço. E então, a janela se abriu de vez.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Passou


Passava os dias distante.
Passava nas ruas distraída.
Passava e não olhava.
Ora, ela não sentia,
ela não tinha motivo para olhar.
Passava, simplesmente,
imersa nos seus sonhos,
perdida nos seus desejos.


Por fora parecia que tinha tudo.
Quem via reparava,
mas ela não,
nem notava.
Era tão comum, tão igual,
não se sentia observada.
Por isso passava, quieta,
sempre pelo mesmo caminho,
em direção ao mesmo lugar.


Um dia se sentiu diferente.
Sonha tanto.
Quem a via caminhando tão tranqüila
não conhecia o tamanho
dos sonhos que nutria,
do romantismo que escondia.
Um dia, num beijo
dado na mesma calçada em que passava
a despertou.
Sentiu-se distante do mundo.
Sentiu-se anormal.
Tanto sonhava,
tanto imaginava,
e veja só, caminhando sozinha
há tanto tempo que nem lembrava.


Agora, atenta a todos os lados,
procura apressada,
espera inquieta,
por alguém que nem sabe quem é.
Apenas anda e observa,
e vê em cada rosto
a possibilidade do encontro
que sempre sonhou pelo caminho:
o sorriso que tanto procura
nos lugares por onde passa,
nos capítulos que esperam,
nas lágrimas solitárias,
no romantismo em vão escondido.
Quase implora pela chegada
desse corpo e dessa alma
que finalmente surja
disposta a ser seu abrigo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Domingo de feijoada

Costumo dizer que a sexta-feira é o melhor dia da semana. E assim que termina o expediente tenho o melhor dia da semana no melhor horário. A noite de sexta parece mais longa, infinita e sem limites. Sim, é o anúncio do sábado com aquela deliciosa sensação de liberdade.


Em famílias numerosas e barulhentas como a minha é impossível planejar o fim de semana. Primeiro é preciso saber qual a disposição do pessoal, porque se há uma coisa imperdoável, é passar o final de semana longe um do outro. Mesmo que seja um dia livre, de sossego e guiado apenas pela vontade, há sempre um compromisso inadiável: estarmos todos juntos. Nós somos completamente contrários a regras, menos essa, que é sagrada.


Assim que amanhece o sábado o barulho já começa. Como se estivessem mortos de saudade, cada membro, grandes e pequenos, já vai chegando à sede da família: a casa da mamãe – que por sinal também é a minha. Na mesa do café, conversa vai conversa vem, e os planos que nunca são percebidos realmente como planos começam a acontecer. Nessa hora registramos os maiores níveis de volume na voz. Saem brigas, discussões, risos, piadas, declarações indiretas de amor eterno. Até que uma palavrinha mobiliza a turma toda: feijoada. Sim! Vamos fazer feijoada neste domingo!!!


Na verdade, a grande preocupação do sábado lá em casa é com o domingo: o que vai ter para o almoço na grande mesa lá de fora??? O importante é que todos estejam em casa, pois a falta de um já deixa a mesa meio bamba, o dia mais sem graça. Então, constatada a presença de todos, quanto vai ficar? Pensa que feijoada lá em casa é feita em uma panela de pressão? Que nada! Dia de feijoada é dia de pegar aquela panelona gigante, de escola, dar uma boa lavada e juntar a força tarefa. E então, divididas as despesas, é hora de ir ao supermercado.


A feijoada é especialidade de mamãe. Aliás, quase sempre é ela quem coloca a mão na massa literalmente. Mas dia de feijuca é expectativa, ansiedade, beiços lambidos o dia todo, já que a feitura do prato começa no sábado à noite para amanhecer pronto e descansado. Mas engana-se quem pensa que pela iguaria mais popular do Brasil amanhecer pronta o domingo nasce calmo. Ahahahaha. Quando não tem um dos filhos provando, em plena madrugada, em nome do ‘Controle de Qualidade”, essa penosa função é exercida assim que o dia amanhece – e o fiscal, geralmente, é meu irmão.


E o dia é uma bagunça! Mulher que não acaba mais dentro de uma cozinha tão pequena. Elas se juntam numa força tarefa que inclui colher a couve, preparar os torresmos e fazer o arroz, descascar as laranjas, lavar a louça, arrumar a mesa, fazer doces. Sim, claro, doce não pode faltar nessa mesa. Assumidamente gordos e escrachadamente felizes, esse pessoal nem se preocupa onde vai caber.


Nosso estômago é dividido em compartimentos. Um para a comida, outro para a bebida, outro só para os doces (e esse é bem espaçoso viu), outro para frutas, enfim, tudo muito bem distribuído. E assim, mesa posta e redes devidamente penduradas terraço afora, é hora de atacar! Tem pé de porco pra todo mundo, o refrigerante predileto de cada um, a provocação simples e a risada alta.


Em pouco tempo faz-se o silêncio. O que será que houve? Barriga cheia demais!!! Com muita preguiça, quase passando mal, um resmunga uma coisa aqui, outro responde ali, todos olham a rua, o céu, a grama, o sono. Chegou o momento de disputar uma rede e contemplar a gula satisfeita até que as sobremesas sejam trazidas. E viva o domingo, a fartura, o barulho , o sarro que um tira do outro por estar quase explodindo. E assim que os doces também são devorados, o ambiente é governado pela preguiça completa, quando cada um procura um cantinho pra tirar uma soneca ou simplesmente observar o céu recostado em algum dos pilares.


Lá em casa todo domingo é dia de festa. Festa sem música, sem bexigas e sem bebidas alcoólicas, entre onze membros de 2 a 73 anos que não sabem viver sem exagero, sem barulho, sem uma boa discussão e uma boa piada. Onze pessoas que não conseguem se ver longe uma da outra e que não precisam de motivos para comemorar a felicidade de viver onde vivem e sob a companhia de cada uma daquelas personalidades tão diferentes. Todo domingo é dia de reforçar o contentamento por estarem ali, e só. A única coisa que muda nisso tudo é o menu.

Falando em menu... o que tem de bom aí pra comer?

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Uma imagem bonita

Recebi essa imagem hoje cedo, pelo orkut, da minha amiga Débora.
Achei linda!

Teclas


Eu preciso das teclas!


Em pensamento é por elas que eu busco assim que alguma idéia brota nessa minha mente romântica e fértil.


Romântica sim, como nos contos mais melosos de antigamente, mas metida à besta como na sofisticação dos dias atuais.


O computador, desde que entrou em minha vida, passou a ser parte integrante do meu kit de sobrevivência em todas as selvas onde eu possa ir parar.


Não é que o papel e a caneta estão sendo, com isso, descartados da minha rotina, mas é com pesar que eu admito: eles não me inspiram mais como antes. Não mais do que as teclas.


Agora, quando me entrego ao mundo encantado das letras, para onde eu queria me mudar definitivamente, é para as teclas que eu corro, e recorro. Esse papel em forma de caixa iluminada (em todos os sentidos), e essa caneta em quadradinhos que dá a cada letra, ponto e sinal uma identidade peculiar, são hoje os instrumentos que definitivamente me conquistaram.


É claro que eu não pretendo abolir o papel e a tinta, nem pensar! No final, tudo volta mesmo ao bom e velho papel. E eu gosto de papel. Quanto mais coloridos, e novas texturas, melhor! E canetas também. Ainda faço coleção delas, e não resisto às extravagantes e de cor rosa.


Mas quando a inspiração aparece, não importa o gênero, são as teclas que eu busco, é nelas que desejo descarregar esses impulsos íntimos. Aquele barulhinho de tlec tlec tlec a cada letra que materializa meus pensamentos se tornaram irresistíveis.


Sei que são, às vezes, frias demais, alvos de duras críticas dos amantes do pergaminho, e dependendo do lugar ou situação, ainda, inacessíveis. Mas são delas que eu sinto uma falta terrível. Meus dedos mexem sozinhos, meus ouvidos detectam, esteja onde estiver, o barulhinho delas. E até quando, sem escolha, volto ao rejeitado papel, deliro tentando achar as teclas de atalho, ou o corretor ortográfico para auxiliar em meus rabiscos.


Não sei. Minha mãe, que era digitadora, conta que toda a minha gestação aconteceu sobre as teclas, e seus colegas de trabalho perguntavam como ia a “digitadorinha”. Talvez seja essa a melhor explicação para a minha fissura. Depois que entrei para esse mundo digital não penso mais em outra coisa.


É inquestionável, porém, o tom romântico e criativo do papel, e das tintas que carimbamos nele de diversas formas, assim como o valor sentimental do original, que é intransferível, como a primeira versão rabiscada, por exemplo. Mas eu não consigo explicar. Assim que a poesia, a crônica, a crítica, o assunto, enfim, surgem, eu já ouço o tlec tlec tlec, e sinto meus dedos se mexerem para cima e para baixo, em perfeita sintonia. Os dedos são os bailarinos, as teclas são o palco, e as idéias, sinfonia.


Escrever é o que eu gosto. O tempo todo eu escrevo, mentalmente. Todas as situações são automaticamente convertidas em textos em minha mente. Eu monto, em pensamentos, os mais variados textos. Primeiro vejo algo que facilmente me remete a esse planeta fantástico das histórias, e logo me imagino escrevendo, de forma a enxergar claramente a construção, sem parar. Então, antes que eu possa me dar conta, sou acometida de uma terrível necessidade das teclas. Elas, e suas facilidades, e seu barulhinho.


Em frente a elas, de tlec em tlec, vou vendo acontecer, registrando um pouco do que há de maior
em mim. Lá do fundo, um mundo à parte que há dentro de quem conhece o sabor que tem esse casamento de letrinhas, vai surgindo e me trazendo bem-estar, tranqüilidade. É uma sensação deliciosa que agora é, inquestionavelmente, imortalizada através do idioma moderno e viciante do tlec tlec tlec das teclinhas.