sexta-feira, 23 de março de 2007

Vontade, Tempo e Disponibilidade


Há um conflito muito grande entre vontade, tempo e disponibilidade.


A vontade, pra começar, é algo que dá e não passa. Ela fica e insiste, mas nem sempre vence. Na maioria das vezes é o tempo o grande vencedor da parada, mas também, em certas vezes, um injustiçado. Ele sempre leva a culpa de tudo. É sempre por “falta de tempo” que se deixa de fazer as coisas das quais se tem vontade. Mas será mesmo que o tempo é sempre tão escasso assim? Não, nem sempre, pois, por muitas e muitas vezes é a falta de disponibilidade que não deixa que atendamos a chorosa e pidonha vontade.


É, as vezes a vontade é descabida, mas quem vai discutir isso? O que é de gosto regala a vida, não é mesmo? Não cabe aqui em todo esse julgamento, na busca pelo verdadeiro culpado, analisar os absurdos e excessos da vontade. Nesse caso ela é vítima inquestionável, afinal, sempre acaba “na vontade”. O tempo, por sua vez, é o primeiro a ser acusado: “não fiz aquele desenho por falta de tempo”; “não cortei os cabelos e nem pintei as unhas por falta de tempo”; “não deu tempo de ouvir aquela música”; “fiquei vários dias longe de meu diário – que nem é diário - porque o tempo é curto demais”...


Sim, parece que as horas estão passando bem mais rápido. Soma-se a isso o fato de precisarmos fazer mágica durante o dia, já que as nossas tarefas e compromissos acumulam-se cada vez mais também. É sempre preciso abraçar mais uma causa, atender a mais alguém, assumir mais alguma responsabilidade, encarar uma distância maior, fazer um curso a mais, trabalhar algumas horas extras, coisa e tal. E aquela poesia que já estava desenhada em sua mente vai desaparecendo pouco a pouco por pura falta de concretização, de reprodução. E aquele banho mais demorado sempre fica pra depois, já que se está sempre atrasado. E aquela música, aquele abraço, aquela brincadeira, aquele artesanato vão ficando pra depois. Um depois que nunca vem.


Mas se o tempo está curto a culpa não é dele. Ele não mudou seu decorrer. As horas correm normalmente e, até onde se sabe, os minutos ainda são feitos de 60 segundos e as horas de 60 minutos. O fato é que nós, pessoas modernas, globalizadas, escravas do consumo e do capital, queremos fazer sempre algo mais, porque nunca deixamos de querer. E nesse caso a vontade volta, mas um pouco disfarçada. É algo como uma vontade não declarada de ter mais dinheiro, de ser mais importante, de fazer mais, de estar em todos os lugares e de se inserir cada vez mais no miolo VIP do mundo.


A raiz desses problemas todos está - só pode estar - na disponibilidade. O ser humano não está mais disponível nem para ele mesmo. As coisas simples da vida, as vontades, tornam-se “tolas” ao ponto de sempre ficarem pra depois. O que não pode ficar pra depois é a loucura, o estresse, a pressão, as cobranças, as contas, o trabalho e tudo que sobrecarrega mental e fisicamente. E aí, quando bate aquela vontade absurda de falar de amor ou de ler um dos salmos da bíblia, não há saída, tem que ser arquivada, porque, quando se pode, se está cansado demais para fazer.


As vezes se trata de coisas tão simples que podem ser feitas ali, naqueles minutos antes de dormir, ou enquanto se toma banho, ou mesmo enquanto se come ou se espera por algo ou alguém. Mas a disponibilidade não vem. O tempo está ali, vago, dizendo “você pode”, mas a disponibilidade ficou lá, na casa da preguiça, do cansaço, da bobeira.


E aí a vontade fica frustrada e perde-se o melhor de nós, a essência do que há dentro de cada um e quer tanto sair, mas que é 'amordaçada' até adormecer – como criança que, de tanto chorar, acaba pegando no sono e esquece. E é esquecida. Deixamos pra um depois permanente a única coisa capaz de aliviar as maiores aflições: a voz que vem lá de dentro, tão sábia e misteriosa, que tenta a todo custo nos apresentar um pedaço do que é verdadeiramente nosso. O pedaço de “eu” que estará eternamente incompleto de tão grande que é.


Um dia, um domingo de casa vazia, um feriado sem viagem, um verão chuvoso qualquer você pára e se dá ao luxo de atender à sua vontade, e aí descobre quanto tempo perdeu em não atender a si mesmo antes, com a desculpa de que esse mesmo tempo conspira contra seus desejos e anseios. E vê o bem que faz a si mesmo nesses instantes tão curtos de dedicação ao que se quer, ao mais simples que se pode ter, mas ao mais gostoso de ser. E fica leve... leve o bastante pra sorrir mais solto, pra achar graça de qualquer coisa, pra se curtir mais. Fica besta ao imaginar que sofre tanto com as pressões da vida, de tarefas e obrigações, quando pode aliviar toda essa tensão aí dentro mesmo, fazendo as coisas mais bobas e sem cabimento do mundo, mas que são as que realmente suprem sua maior necessidade e te deixam com a sensação de dever cumprido de verdade.


Nessa contagem doida das horas que fazemos dia-a-dia, deveria haver um espaço, por mais curto que seja, para disponibilizarmos a essa vontade cristalina e inocente. Pelo menos para aprendermos mais rápido um modo de viver melhor, de se conhecer e se compreender melhor diante dessa vida cada vez mais inquisidora, mas também cada vez mais desejada.


É, parece que o júri já chegou a um consenso. Há um envelope em suas mãos com o nome do grande culpado dessa história toda. Pasmem! O Juiz anuncia: “declaro culpada a Vontade! Exatamente. A Vontade é a culpada de tudo isso, desse caos interior e exterior. Se não fosse ela, que tanto quer e tanto pede, haveria mais tempo e mais disponibilidade. Mas ela não deixa de querer e, inimiga de si mesma, se disfarça comodamente dentro de uma capa consumista, executiva, de salto alto e óculos de grife, cheia de presença, mas artificial. Artificial porque se deixa enganar com realizações fúteis enquanto mata, lenta e silenciosamente, sua própria essência – a que poderia salvar a todos nós.

A menina


A menina,
Quando está debruçada na janela,
Observa os detalhes e não vê feiúra.
Dedica o dom de enxergar e sentir
Porque assim se sente bela,
Com tudo que ali, à sua volta,
Tão delicado, se revela.


Fica maravilhada,
Essa menina,
Com o dourado do sol no chão,
O verde tão verde da grama,
E o ar límpido que penetra o pulmão.


Ela,
Ri e manifesta-se sozinha,
E sabe-se lá o que se passa
Na mente enfeitada da menina,
Longe de ser franzina,
Longe de ser criança...


Mas é ali
Que as histórias mais felizes
Se formam em sua mente,
E ela gosta muito de contemplar
Até mesmo os cantos mais esquecidos
Do lugar que lhe floresce pela janela.


O som
Silencioso do vento que bate no mato,
Que espanta as borboletas,
Que voam e se atrapalham, e se encontram
Com os passarinhos no telhado,
Combinam com o teclado
Pra onde ela leva essas lembranças.


A menina
Tão grande, tão cheia de sonhos,
Mesmo quando tem de fechar a janela
Pra deixar a noite cair em paz,
Adormece com a certeza de que
Todo dia, nesse lugar, há mais para contemplar.


Com chuva,
Com sol, frio, calor, tempo nublado,
Ela sabe que sempre terá,
Do lado de lá da sua janela
O lar perfeito para morar
E resgatar a menina
Que sempre escapa do tempo
E pula de dentro
para sonhar...


Cadernos


Tenho muitos cadernos novos guardados.


Eu os guardo com tanto cuidado, com tanto zelo!


Mas hoje estava aqui olhando um deles, tão bonito, tão limpinho, e pensei: “porque guardar tantos cadernos com páginas vazias? Porque evitar de preenchê-las, de usa-las? Por que esse medo de estragar? São simples cadernos. Quando acabar, você compra outro, que talvez seja até mais bonito. Mas o que vai assegurar mesmo sua beleza, é o que você pode registrar neles. De um jeito ou de outro, tudo que for gravado nessas linhas torna-se imortal. E dependendo da forma que você o fizer, pode transformar-se em ouro”.


Decidi soprar o pó de cima das caixas e tirar delas todos os cadernos novos que há anos envelhecem sem uso dentro delas. E vou me reproduzir em cada uma daquelas linhas. Sei que juntos podemos conseguir muitas coisas. Sei que através delas posso me conhecer cada vez mais.


Que sejam, então, eternas companheiras as linhas dos cadernos que eu tanto guardei. Vou devolvê-los ao objetivo comum do uso, e usá-los, enfim, para me descobrir na brancura dessas páginas. Pra me doar completamente nessas folhas da forma que eu souber.


Por causa desse amor todo pelos cadernos e do cuidado, do medo de perdê-los, deixei de usar, e sequer os vejo, já que dentro de caixas empoeiradas e esquecidas os tirei de circulação sem nem mesmo tentar. Que saiam, então, e ganhem vida, me trazendo também muita liberdade por meio disso que eu tanto amo: escrever.


Os cadernos serão, eternamente, o retrato da lição. A lição de casa, a anotação do que é aprendido, do que é discutido, o lembrete de tarefas, de segredos, de recados. Serão, eternamente, fonte de inesgotável inspiração. Com a vantagem de poder ser carregados para onde quer que vou. Eles estão sempre dispostos a ouvir o que tenho a dizer. E aceitam, silenciosos e leais, tudo que nele confesso, desde o que não sabemos e não conseguimos entender, até o que fazemos sem pensar.


Vou abrir os meus cadernos guardados. Vou marcá-los com a minha letra e a minha vontade de registrar a imensidão daquilo que se sente, mas nunca se sabe bem como explicar. Eles saberão.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Escrever


Começaram a fervilhar
E nem me lembro quando foi,
Sei que pipocam aqui dentro , sem parar.
Pipocam e bagunçam:
Um revelar!


Demorou pra entender
Aquelas loucas, misturadas,
Ingênuas, malvadas!
Sobem e descem, se misturam:
Um transformar!


Brincam com a minha sanidade,
Mergulham dentro de mim,
Saem e entram de novo
Em branco, preto, furta cor e marfim:
Um guiar!


Amigas, inimigas
Se juntam e dizem algo
Depois se deixam, se jogam
Com regras e sem sentido:
Um circular!


Parem todas.
Não vão me enlouquecer!
Me consomem por dentro, e vão
E vorazes voltam do chão:
Um brotar!


E de repente
Começam a complicar.
Estão juntas, mas separadas,
Formam fila em diálogo:
Um lugar!


Agora sim começo a entender.
Não parem,
Continuem a se mexer.
São letras, palavras:
Um amanhecer!


E eu que não sabia,
Não podia compreender,
Essa vontade que invadia.
Ora, são letras, palavras:
Escrever!

Sem rosto


Sonhei com alguém sem rosto. E ainda acordada, sonhei com alguém sem voz.

Apenas sonhei, de olhos abertos e com a alma entregue, com alguém sem cheiro.

Não busquei esse encontro. Apenas me deixei levar por uma correnteza... por uma emoção causada por alguém ainda sem pele.

E quando não podia mais evitar, o sonho continuava, e eu já presa, delirava intensamente com alguém sem calor.

Mas a emoção foi real, porque depois de horas, me pegava sonhando com alguém que não conhecia realmente.

Eram letras apenas. Letras de forma que pulavam em minha tela colorida. Letras que não me davam sinal algum de forma ou formosura, mas que me deixavam ver uma ponta de forte personalidade.

Depois, sozinha, deitada , mas bem acordada, sonhei com momentos simplesmente agradáveis, que me fizeram sentir paz e sossego. Que me deixaram ser apenas eu. Mesmo que somente através das letras de forma, me permitiram sonhar com alguém que eu não sei quem é.

Criei momentos e situações. Imaginei risos e felicidade - oportunidade única para um coração que, até então, encontrava-se vazio.

Ainda sem rosto, festejo intimimamente o motivo de tudo isso. E sem conseguir entender como algumas letras salpicadas em minha tela, que agora é tão mais viva e colorida, fazem-me sentir os dias mais quentes por essa presença, que, sem face, faz-se sólida pouco a pouco em meu coração.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Manacá


Passa batido o lado pobre da rua.
Calçada quebrada,
córrego, mato, sujeira e feiúra.
Só dá pra ver o volume e a vibração da mistura
dos manacás.

Assanhados, escapam pelas grades,
despontam com suas três cores,
pintadas nas graúdas flores
de ares de interior
que tanto lembram paz.

Mesmo numa cidade acinzentada,
diante de olhos indiferentes
de pressa, barulho e solidão,
envolta no ar de poluição,
nascem e florescem os manacás.

E eu, quando chego a esse caminho,
passo devagarinho e,
em segredo,
cochicho com eles:
que bom ar esse que os traz!

Nessa época do ano,
quando na beira da estrada,
se avista de longe, na mata,
um monte deles, assim, em pura flor,
perco o prumo extasiada.

Sorriem, marotos,
charmosos e repletos,
como que mais belo não há.
Porque sabe, a planta,
que quando imagino o paraíso,
visualizo logo na entrada meu predileto:
o Manacá.

Assim são os inesquecíveis




Mudam as companhias, os cenários, a trilha sonora. Muda-se o estilo, o vestir, a cor dos cabelos, o clima, o gosto e até a forma de pensar. Mas há coisas que estão enraizadas, plantadas na alma para nunca mais morrerem. São como raízes de árvores milenares, ainda mais admiradas com o passar do tempo. Raízes que ultrapassam o espaço estipulado a elas. Na verdade, são como obras de arte - e de fato o são -, confeccionadas pelas mãos do destino, da vida, que nunca dão satisfação.

E a gente fica sem saber, sem entender o por quê... Por que será que mesmo depois de ter mudado o repertório, quando "aquela" música toca, a gente deixa de estar ali onde estava, para buscar algo que já foi? Por que, depois do cenário trocado, dos holofotes virados para outra direção, sempre tem alguma passagem que volta e nos carrega junto com ela para capítulos que já não se repetem mais? Sempre tem um cheiro diferente que invade o ambiente quando menos se espera e faz o tempo parar, recuar. Sempre tem uma palavra, um gesto, um objeto, um momento, uma mania que aparecem repentinos e atropelam o presente, puxando para o passado que nem pede autorização, apenas nos impõe as lembranças.

E são lembranças que nunca perdem a cor, o clima, o teor. Essas nunca perdem a majestade. A fase pode ser outra, mas sempre é tempo de voltar a sentir na alma momentos que mudaram a nossa história e nos fizeram teletransportar, sentir coisas que nunca poderão ser definidas com exatidão, sequer detalhadas. Apenas lembradas, mesmo quando se busca esquecer.

Os inesquecíveis não morrem, não acabam, não somem, não se apagam, não se desfazem... não se esquecem. Porque nunca perdem o vigor. As raízes, quando profundas demais, ocupam um espaço muito grande e abalam qualquer estrutura. E depois, mesmo que se tornem apenas história, ainda nos obrigam a admirá-las, e a carregar conosco pra sempre essa sensação de fervor nas veias e frescor na alma.

E os sinais nunca deixam de surgir, por mais que o futuro se faça presente, deixando o passado cada vez mais distante. Esses sinais não enxergam a distância. Quando eles surgem, sempre do nada, agarram a gente bem forte pelo coração e puxam para reviver , em segundos, o que o tempo não consegue apagar. É mais do que a velocidade da luz. São flashes que a gente enxerga por dentro e sente novamente igual, como se não tivesse acabado. Não importa quanto tempo faz e nem quão longe se está. Os sinais vêm, se transformam em lembranças e nos levam a sentir novamente tudo aquilo que o coração nunca vai querer deixar de sentir, simplesmente porque não consegue esquecer.

Assim são os inesquecíveis. E o são apenas porque foram reais e verdadeiros o suficiente para se tornarem eternos. E porque nunca é demais vivê-los e revivê-los, mesmo que por segundos que se repetem a vida inteira.


Nos caminhos por onde eu passo há manacás.
E eles estão floridos.