quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Colecionadora de saudades



Eu, que coleciono saudades, não consigo entender o fundamento de um dia como esse de hoje, de finados. Homenagear os mortos é para quem não mantém laços, porque os que mantém nunca consideram realmente mortos os seus.

Não há, para mim, a possibilidade de celebrar a ausência. Não há nem como justificar a falta que uma pessoa é capaz de fazer.  Muito menos de me conformar com algo que me foi imposto e para sempre.

Talvez, de todos os dias do ano, de todos os anos, de toda uma vida de saudade, este seja o único dia em que eu me dou o direito de não pensar naqueles que já perdi. Me recuso a homenagear qualquer coisa ligada à morte.

É verdade quando dizem que para tudo nesta vida há solução, exceto para a morte. Ela é covarde e fria. Ela tira de uma vez e não oferece nenhum tipo de redenção. E pior do que isso: não dá nem uma explicação. A vontade dela é suprema e absoluta e não há defesa contra ela.

A morte é feia. É ditadora. É a causadora de nossas maiores dores, e mais de uma vez. Ou, como é o meu caso, mais vezes do que se pode aguentar.

Falo de uma dor que ela nos oferta, lancinante, cruel, devastadora e que dura, simplesmente, para sempre. Um presente de mau gosto que você não quer, mas é obrigado a carregar até seu último dia. E que pode, como se não bastasse, se acumular com mais ‘presentes’ que ela é capaz de trazer.

Eu, que acumulo datas vazias, inundadas de lágrimas jamais consoláveis, entendo como ninguém, graças a morte, de gritos silenciosos; de dores improferíveis; de perdas irreparáveis; de um vazio que não se pode preencher jamais.

Entendo dessa injustiça que é perder, de um segundo para o outro, um alguém. O alguém. O nosso tudo.

E mais de uma vez. E mais, muito mais, do que um alguém.

Graças a morte, entendo de distâncias. Entendo de silêncios.

Sim, ficam as lembranças. E há também as flores. Poesias para enfeitar a dor. Mas tudo isso só faz doer mais.

As lembranças doem a cada amanhecer e se estendem ao longo do dia, em cada um daqueles instantes em que sabemos que falta alguém ali para provar aquele sabor, para ver aquela vista, para sentir aquele cheiro, para repartir aquela vida.

Hoje, só hoje, não chorarei a ausência de ninguém. Tenho todos os outros dias do ano para isso e eles já me bastam. E os lavo com minhas lágrimas pelos que se foram, pelos que perdi e tudo o que levaram com eles, não pelo que a morte é.

Não irei homenagear os mortos porque seria como festejar minha própria morte. A que acontece, aos poucos, aos pedaços, cada vez que sou obrigada a me afastar dos meus amados.


E mente quem fala em despedida. Não há. Nunca há.  Quem dera que houvesse.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Olhar para fora

As vezes, olhar para fora é tudo o que precisamos para aprendermos a olhar para dentro.

Tanto se fala sobre a importância de desbravarmos nossa alma e nos conhecermos profundamente. E eu concordo. O autoconhecimento é requisito básico para a liberdade, a autonomia, a independência. Quanto melhor nos conhecemos, mais bem nos posicionamos diante do mundo, dos outros seres humanos e seres vivos; e mais podemos oferecer a tudo que está à nossa volta. Quem bem se conhece, mais saudável é.

Só que ninguém nos dá uma receita para treinar esse olhar de dentro, uma vez que essa tarefa é uma das mais árduas e nunca tem fim. Se bem que é compreensível. Tudo que é íntimo exige métodos igualmente íntimos: cada um de nós tem seu jeito próprio de ver e aprender.

Mas se conselhos ainda servem para alguma coisa, aí vai o meu: olhe para fora!

Gosto quando chove à tardezinha. Eu fico na janela e me perco admirando as mecânicas da natureza. O som da chuva, mesmo quando bem forte, acalma; a alegria das plantas é algo que dá para sentir; e alguns pássaros, em particular, aguardam ansiosamente por isso, porque enfeitam o céu numa revoada numerosa e impressionante. Bailam e bailam debaixo das gotas caindo do céu que é todinho deles.

Gosto de observar os Quero-queros que pegaram nosso pátio para eles. Esses fazem ninhos no chão – o que é muito estranho! Eles, que podem refugiar-se e proteger suas crias nos locais mais altos, escolhem justamente o chão, e totalmente ao relento. E mesmo que caiam granizos, que a chuva venha acompanhada de um vento bravo, eles permanecem lá, imóveis, acima de seus ninhos, como se nada os abalasse. Assim que a chuva para, eles se levantam, sacodem a água das asas e voltam a gritar e rodear o terreno que agora é deles. Aguentam o frio também, a geada, e no outro dia, lá estão eles.

Que bom! Porque eu vou, com certeza, voltar a olhar lá pra fora para me abastecer de informações sobre mim aqui dentro e cada um desses elementos, essas criaturas, possuem uma responsabilidade imensa nesse meu crescimento, nesse exercício de admiração e adoração. Quando faço isso, sinto amor, sinto compaixão, sinto compreensão.  Sinto gratidão! Uma onda de paciência me invade e, como num passe de mágica, parece que entendo a maioria dos percalços da vida.

Pois é. Quando preciso me olhar por dentro eu sento no meu terraço e olho lá pra fora. Vejo os cachorros correndo pela grama e consigo até gargalhar com a diversão deles. Eu vejo as árvores carregadas de frutas e, imediatamente, sou impelida a elas. O sabor da fruta colhida e comida na hora abastece com dignidade qualquer lembrança do que realmente é bom.

Eu olho para a rua, as pessoas passando com crianças, carrinhos de bebê, na maior simplicidade. “Como será que elas estão?”, logo penso. Vejo os carros passando por cima do pontilhão. “Que música será que está tocando em cada um deles?”, me pergunto. Sem querer, sou levada a uma oração que pede, somente, que todas estejam bem e que cheguem bem em suas casas; que a paz esteja presente em seus corações; que a bondade seja asfalto em seus caminhos.

Nada disso é programado. Nada disso é intencional. Mas olhar para fora faz de mim, sem dúvida, uma pessoa melhor. Especialmente quando a chuva cai e faz coro a essa minha mania de poetizar a existência. Não serei hipócrita de dizer que o efeito é permanente. Eu também tenho dias bons e maus, tenho gentileza e maldade dentro de mim, perdões que ainda são difíceis de conceder, mas a essência disso tudo é, sim, permanente. Ela vai compondo a enciclopédia secreta que todos nós vamos preenchendo na alma ao longo da vida com o que aprendemos. E esse tipo de aprendizado, esse que a gente sente na pele, é o melhor de todos, porque não dá pra esquecer.

Espero que meu conselho sirva para você. Quando precisar se ver por dentro, se conhecer melhor, identificar o que te emociona, o que te eleva, procure perceber o que sente quando olha para fora, para a vida acontecendo bem na sua frente, tão simples, tão objetiva. Veja se algo ali te traz paz, te faz querer se dar aqueles minutos, só isso já revelaria muito, muito mesmo. E se sentir gratidão, ao menos um pouquinho que seja, meu amigo, essa minha fórmula boba deu certo pra você também, porque esse é o melhor sentimento que essa jornada tem a ensinar!

terça-feira, 17 de maio de 2016

Tempo

Tempo: a poesia da existência; a ameaça da existência. O mistério e a resposta universal. O prazo e o infinito. Tudo no mesmo invólucro de vento.

Tempo: o confiável impalpável. Invisível certeiro. Quase sempre traiçoeiro. Inquestionável tempo de ser. Do ser. Era mutante que nunca passa, mas que faz tudo passar.

Tempo: agora; ontem. Amanhã, talvez – para você, pois o tempo é certo para ele mesmo. E para a história, vital.

Uma nuvem de poeira. Um sopro. Um suspiro curto, ou as vezes demorado. Um arrastar de ossos. Um suplício. Um prêmio. Tempo: um milésimo de segundo por vez até que o relógio pare – para você, nunca para o tempo.

Nunca pára o tempo. Nunca finda o tempo. É ele que faz o findar. Das vidas, das eras, dos sonhos, das ilusões, das crenças. Dos erros e dos acertos. O tempo é o vendaval mais sublime de que se ouviu falar.

Tempo: condição suprema à vida. E à morte. Aliado das épocas, precisa te desintegrar para que elas sobrevivam. Porque o tudo é a prioridade. O tempo de ser só pode existir e tornar-se infinito através do ser, finito. Morto pelo tempo; vivo pelo tempo.

De tão abundante em si, torna-se escasso o raro tempo. Mas só para quem não é vento. Nem suspiro, nem nuvem. Nem firmamento.

E em troca de nossas vidas curtas, ganhamos... tempo! Uma ilusão de tempo. Uma fração do que tem o tempo. Um breve suspirar nessa existência. Uma única e implacável chance de fazer história e, quem sabe, se firmar no tempo.


Pelo menos por um tempo.