quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Menino sem bicicleta não é menino


Meninas são meninas. Meninos são sempre moleques. E quando a gente imagina um moleque, ou um bando deles - que é mais divertido ainda -, parece que vem uma cena padrão à mente: a rua, esticando-se lá atrás, e um peralta pendurado em uma bicicleta, as vezes até andando sem as mãos. Sim, a bicicleta nunca é vista separadamente deles, e nem eles dela. Menino sem bicicleta não é menino.

O Victor, por relaxo, já estava sem bicicleta há um bom tempo. Também, brincava o dia todo e depois nem se dava o trabalho de guardá-la quando tinha que entrar. A coitada, além de ser usada em rampas e outras aventuras para as quais não era própria, ficava na chuva, no sereno, no relento. O tempo agiu rápido sobre ela, fazendo com que o Victor valorizasse sua companheira inseparável da pior maneira possível: pela falta. Chegou um tempo em que o pedal nem rodava mais, tudo endureceu na coitadinha.

Mais frustrante não poderia ser. O Victor mora em um lugar privilegiado para quem é moleque. Uma rua calma e bastante espaçosa pra pedalar, fazer rampa, derrapar e tudo o mais. Mas quando ele não pode brincar na rua, espaço não é problema dentro da chácara onde ele mora, e onde se reúnem, todas as tardes e finais de semana inteiros, um verdadeiro batalhão de meninos que nunca cansam de brincar e brigar. Então, imagine tudo isso, e todos eles juntos, cada um com a sua bike, e o Victor lá, com seus 10 anos de idade, a pé...

Os pais, enraivecidos pela falta de cuidado e zelo do filho, prometiam nunca mais lhe dar outra bicicleta. Aquela já devia ser a terceira, e como ele cresceu rápido, a última, já que era tamanho grande. Bicicleta é assim mesmo, chega um tempo, ainda na infância, que a gente ganha a última, e geralmente é quando chega a bicicleta grande, aquela que não tem mais pra onde evoluir. Mas o Victor não cuidou da dele e deu no que deu... todo mundo de bike, e ele correndo atrás, a sola de sapato mesmo.

As vezes ele emprestava a bicicleta da tia, mas isso lhe valia um bom sermão a cada emprestada. Ele, relaxado, ou deixava de guardar a bike, assim como fez com a dele, ou a devolvia com os pneus cheios de barro, e até coisa pior... de cachorro (éca!). Cada vez que ia pedir era um sermão de recomendações e ameaças, e a cada final de dia, ao devolver, era uma bronca diferente.

Um dia, de dentro do carro da mãe, ele se apaixonou. Viu numa loja especializada em magrelas uma bicicleta totalmente diferente. Nunca mais ela saiu de sua cabeça. Estilosa mesmo, formato diferente, banco continuado, rodas bem largas, parecia bem confortável... e cara! Se pedir uma bicicleta nova já era uma tarefa complicada, quem dirá uma daquela, quase três vezes mais cara que as outras comuns. Mas não tinha jeito, ele só queria aquela.

Pediu, pediu, pediu... o ano todo, cada vez que passava na porta da loja seus olhos brilhavam, seu coração batia mais forte. Ele estava apaixonado e, quando evocados seus sonhos de vida, nem titubeava em dizer: “eu quero aquela bicicleta”. Ficou prometido que, talvez, se ele merecesse, ganharia no dia do aniversário. Mas o Victor só faz aniversario em dezembro, portanto, havia ainda um longo caminho a seguir. Enquanto isso, ia quebrando o galho com a bike da tia, de vez em quando, sobre os mesmos protestos, ou,com a solidariedade dos amigos, brincava de esconde-esconde, pega-pega e outras coisas que não exigissem duas rodas.

Mas de longe, quem olhava, sabia que um menino, quando não tem uma bicicleta, perde um pouco sua identidade de menino. Ele fica meio sem jeito, desambientado, desmotorizado. Ele também se sentia assim, mas tinha fé que em seu aniversário isso mudaria, mesmo com as ameaças em volta por causa do inesquecível destino da magrela anterior. Esperou pacientemente e, a essa altura, a data se aproximava.

A surpresa veio antes do que ele esperava. Ainda faltavam alguns dias para completar os seus 11 anos quando tudo foi preparado. Parte da família se reuniu e comprou a tal bicicleta que rodava e reluzia em seus sonhos. O amor faz uns movimentos interessantes dentro de uma casa, não é mesmo? Mas ele mereceu sim... era um bom menino, embora meninos sejam sempre e cada vez mais moleques. Pelo menos ele tinha saúde pra isso e esse era o grande incentivo para aqueles pais, aquela tia e aquela bisavó que foram correndo providenciar o sonho do menino que parecia meio manco sem a sua bike.

Quando ele chegou em casa, seu pai mandou pegar o colchão no quarto do irmãozinho. Ele foi, meio a contra-gosto. Jamais iria imaginar que o seu sonho já estivesse reluzindo lá dentro, dias antes do seu aniversário, afinal, todo mundo dizia que ele não ia ganhar é nada. Abriu a porta e... “Nossa! Quem foi?”, disse, com um sorriso de orelha a orelha de menino agora realmente moleque, completo, feliz. Era isso mesmo que ele queria.

Já era noite e garoava, mas ele não podia esperar mais. Saiu com a sua bike novinha em folha, apresentando-a a cada pedrisco, cada pedaço de grama e de concreto onde ela passará com ele inúmeras vezes pelos próximos anos. E não parou aí. Todos os dias, ao chegar em casa, pega a sua bicicleta esquisita, toda diferente e estilosa, e sai, com os amigos, agora poderoso sob essas pernas extras que ele esperou durante quase um ano todinho. Não se vê mais o Victor sem a sua magrela, amiga, companheira e moleca também, só que essa teve a sorte de ser mais bem cuidada: mora dentro de casa, toma banho e é velada com muito esmero.

Um menino com sua bicicleta é um menino completo, moleque de verdade. E os adultos que sentam na escada do terraço pra ficar olhando aquela molecada toda fazendo peripécias sob duas rodas na rua sente isso de longe, e agradece a Deus por essa fase da vida.

2 comentários:

  1. Bicicleta pra moleque é perna...
    O coração bate no ritmo das pedaladas, a vida em duas rodas é fantástica e dá uma visão de mundo em outra velocidade.
    Só moleque entende isto.
    Manda ver...

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